segunda-feira, 20 de junho de 2011

Um conto para Vovô


Café requentado com adoçante não fazia parte do cardápio de meu avô. O quente-frio, durante o dia, era reabastecido pelo menos duas vezes, um vício que o caracterizou como vovô café. Trajes finos à moda social, calça e camisa engomadinhas bem passadas, gravata de cor discreta, sapato social bico quadrado, relógio prata no braço direito, óculos de armação marrom escuro. Era assim seu perfil ao ir à igreja. Sério, recatado, modesto, observador, sorriso trancado, passos ligeiros, carregava sempre no braço esquerdo o paletó, caminhando no seu destino, rotina inalterável e padronizada, quem conseguiria se adaptar àquele estilo de vida? Marcas da lembrança eram identificadas nos contos corriqueiros em nossos diálogos, consequência das análises literárias do curso de Letras, pois eu discernia com cautela o discurso tanto no aspecto lingüístico-psicológico, como também social. Pedia-me, como sempre, um pouco do meu tempo para conversar, aliás, era mais do que um diálogo, era um ouvir diferente da minha parte, um falar peculiar da parte dele, carências mal resolvidas se desabrochando naquelas palavras sábias. Eu gostava, ponderava, criticava certos posicionamentos, ria, emocionava-me por dentro, mesmo sem evidências de lágrimas, impressionava-me com sua voz grave e afinada como um nato orador e exímio leitor das Escrituras Sagradas. Minhas visitas à casa de vovó não eram tão freqüentes após as demandas da vida que se priorizavam, mas o meu sentimento de saudades, juiz da minha consciência, latejava no meu coração. Por isso, dispunha-me a visitar aquela casinha, grande por dentro, cabiam todos da família, não por causa do espaço, mas o simples desejo de estarmos todos juntos. Vovô não se importava com a falta de conforto que o acometia em períodos sazonais: festas juninas, ou natalinas, ou as férias de início de ano. A memória pertinente dos momentos da minha infância me humaniza mais e mais.
Tempos atrás, ainda eu era mancebo, houve um dia no quintal da casa de vovó, sentado ao lado de vovô, juntos à mesa velha, quente-frio no chão, ao lado da cadeira dele, pernas cruzadas, tom sério, palavras ditas pautadamente, eu e ele. Era tardinha, o sol preparava-se para ocaso, na gaiola, cântico de pássaros, a cadelinha pepita deitada debaixo da mesa, uma cobertura de Eternit cobria boa parte do quintal, eu e ele. Zelador de um perfil cristão característico das tradicionais igrejas pentecostais, os mesmos trajes sociais, como de costume, porém, tais trajes mais simplórios usados apenas dentro de casa. Dialogou:
- Vou te ensinar a ler um versículo deste livro Sagrado que jamais se esquecerá.
O diálogo dele tinha uma sonoridade incrível, afinadíssima, sem gaguejos, clara, coesa. Cada palavra era expressa com vivacidade de certeza e um tom exagerado de seriedade. Eu, com 12 anos de idade, ouvia-o, respeitava atentamente, não entendia muita coisa, porém a impostação da voz dele me chamava muito atenção.
- Leia!
Soletrando, li: - “Je-sus dis-se-lhes: Eu so-u a Luz do mun-do, quem me se-gue não an-dará em tre-vas, mas anda-rá na luz da vi-da.”
Indaguei-me: - Luz, trevas? Eu hein?!
Explicou-me: - Você é órfão de pai, mas Deus é teu pai maior! Você terá uma vida na presença da Luz de nosso Senhor Jesus Cristo.
E, assim, falou de outros assuntos, que não me recordo. Entretanto, o que ficou no meu coração foi: “Eu sou a luz do mundo...!”
Fim de diálogo, subi, passei pela varanda e na frente de casa gritei aos ouvidos de meus colegas para retomar a brincadeira de bolinhas de gude.
À noite, já eram sete horas, tomei banho, vesti-me, vovô me chamou para acompanhá-lo à igreja. Fomos. No caminho, ele andava mais rápido que eu, e assim, apressava meus passos para ficar no mesmo ritmo que os dele. Ruas desertas sem um pé de gente, atalhos desconhecidos por mim, eu e ele andando. Disse-me:
- Está vendo aquele porte ali?
- Hum, hum...!
- Está apagado. Mas ao passarmos por debaixo dele, somos a luz do mundo e o acenderá!
Meu Deus! Eu não sei, mas até hoje me pergunto por que vovô tirou aquela ideia esquisita da cabeça. Vi o poste da lâmpada apagada, e quando menos espero, acendeu! Ele olhou para mim, riu e bradou com as mãos para cima: - Glória a Deus!
Eu fiquei assustado com aquela revelação precoce concretizada instantaneamente. E, assim, todas as vezes que passávamos pelo porte da lâmpada apagada se não acendesse na hora, ao regressarmos da igreja no momento que passávamos debaixo dele de novo, eu fica olhando para trás para ver se acendia, e acendia novamente. Ele olhava para mim e dava risadas. O engraçado não era o porte da lâmpada apagada, nem a profecia que ele falara, nem o reacender da lâmpada após nossa passagem, mas o lindo sorriso que dificilmente eu via no rosto dele por causa da vida dura, frustrada, amarga, desiludida, contada nos momento de diálogos que tínhamos. De sorriso trancado, naqueles momentos, destrancado por causa do valor de dar importância do simples fato de ouvi-lo, acreditar nele.

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